sexta-feira, 29 de março de 2013

Alegoria


Cai de imprevisto num qualquer planeta,
Vindo talvez de um asteroide, ou não.
Entra vagarosamente em cada homem
Como quem desce uma caverna imensa.
Colide em rochas maciças de terror,
Desaparece numa sombra suspensa.
Um muro opaco, um silêncio absoluto,
Uma quase inaudível esperança.
Amove a bílis, mergulha novamente.
Uma brecha de luz, um oceano.
Em cada víscera, galerias de corais.
Grande viagem! Sem dúvida, a maior!
Aquela gruta, aquele corpo humano.


Emerge além na derme de arenitos.
Um corpo exíguo, uma alma cheia.
Uma aventura! A maior aventura!
Ser o deserto, dormir num grão de areia.

Né Fonte
Imagem da internet

domingo, 24 de março de 2013

Do lado de lá das pedras


Cercaram-lhe as ideias
num assalto.
Ficou refém de um sem-número de ilusões.
Estenderam-lhe o corpo no asfalto, deceparam-lhe
lentamente as sensações.
Teve medo, muito medo, do momento.
O poeta a soçobrar ali, no chão.
O corpo cativo, ele entende e aguenta,
o sonho nunca morre.
Não o matem! Não o matem! Não!

Olharam de soslaio o seu desígnio, e,
em jeito de malvadez ou zombaria,
arrancaram-lhe dos braços aquele sonho,
como quem rouba ao céu a fantasia.
Depois, dois tiros certeiros, e salpicou
de vermelho carmim a poesia. Morreu, eu sei.
Mas que lhe importa a morte,
se uma só vida lhe trouxe tantas vidas?

Será para sempre o outro lado, como se o corpo
se elevasse ao infinito, ou a longínqua viagem
do seu eco fosse a sombra interminável do seu grito.


Maria da Fonte
Imagem retirada da internet

segunda-feira, 18 de março de 2013

Artesão de sonhos



Era um homem velho, artesão de sonhos,
Aquele que eu via no largo da aldeia.
Como eu gostava de o ver chegar
Envolto em trapos feitos de memórias.
Um corpo esguio, esculpido pela fome,
Um saco vazio, tão cheio de histórias.

Eu sentava ali, bem perto do chão,
Enquanto ele olhava tão sofregamente.
Tirava do bolso um naco de pão,
Depois, só depois, voava no céu.
Sem pasta, sem livros, que bem ele lia
Os meus olhos negros trazidos de casa.

Então, eu subia, subia, subia 
Ao cimo das nuvens, tal anjo da guarda.
Um grande cordel, e o velho guiava,
Do pico das pedras, o sonho no céu.
E o velho sabia, mas nunca me disse,
Que o sonho que tinha ele é que mo deu.


Se o sol aquecia as asas de mais,
O velho puxava com força brutal.
O fio cedia àquela vontade,
Eu voava ilesa por entre os pardais.
Depois, mais um voo, pousava no chão,
O velho ali estava à espera de mim.


Eu olhava-o triste, de regresso a casa,
E ele sabia que estava no fim.
Mas nunca me disse para onde ele ia,
Talvez não quisesse que o sonho partisse.
Eu esperei, esperei, sentada no chão.
Nunca mais voei desde aquele dia.



Então eu dormi tão profundamente,
Enrolada nas pedras, tão triste, tão só.
Sonhei que fiquei com o fio na mão.
Minha mãe apontou-me uma estrela cadente.
Eu puxei, puxei, o velho não veio.
Chamei-o tão alto, disseram-me não.


E logo eu gritei de novo outra vez:
-Trago para ti um naco de pão.
Vem cá, quero ver-te, levar-te comigo,
Guardar-te bem dentro do meu coração.
O velho não veio, olhei aturdida,
Do cimo do sonho, o fundo da vida.
E os meus olhos negros, prostrados no chão,
Viram tantos velhos caídos em vão.

Maria da Fonte
Imagem retirada da Internet

terça-feira, 12 de março de 2013



Os poemas gostavam de voltar.
Pousavam no cume das ideias e desciam
vagarosamente ao sopé.

Depois, esporadicamente, paravam;
temperavam as entrelinhas com o sabor das terras,
deixavam pelos caminhos um rasto adocicado a fantasia.

Eu ficava ali agachada nas pedras,
à espera de um pedaço de ilusão.
Havia fome no tempo dos meus pais.

Nas entranhas da serra, os nichos de palavras
aninhavam-se como pedintes;
esgravatavam o chão num gesto martelado e corriqueiro.

E eu ficava ali à espera de ver nascer
do ventre da terra um poema.
Queria tanto que a terra fosse redonda como a minha mãe.

Só então levantava a cabeça em profundo desalento.
Olhava o pico das nuvens e sonhava
que a minha aldeia era um livro.

Minha mãe puxava-me pela mão.
Os poemas ficavam para lá da vida
e o horizonte era o lado negro da sorte.
Maria da Fonte
Imagem retirada da Internet

terça-feira, 5 de março de 2013

Enganaram-se



Se um dia vires por aí
A pílula que cure o medo, não hesites.
Temo que ele me mate brevemente. Metastizou-se
À velocidade da luz.
Há dias em que mal seguro a dor. O medo atravessa-me a medula,
Emerge à superfície em ferida;
A lava escorre e as cinzas roçam a morte.
Já levo comigo um sem-número de dentes cravados nos ossos,
Receio que não chegues a tempo de sensibilizar as larvas.

Perguntam-me os médicos o que como, o que corro, o que durmo.
Eu deixo cair um fio de voz assustada:
Tenho medo.
Depois entopem-me outra vez de remédios.
Este é para o dia; esse, para a noite; aquele, para a dor…
Regresso a casa com o cadáver debaixo do braço aos saltos.
Sento-me de frente para mim,
Tiro a bula da caixa e procuro nos diferentes compostos
A percentagem de inocência. Nada!
Químicos! Químicos! Químicos!
Fecho a caixa, inconsolável.
Enganaram-se!


Maria da Fonte
Imagem retirada da internet