quinta-feira, 4 de maio de 2017

Vala comum


Batem as horas no centro da cidade,
A vida ampliada num cartaz.
O tempo a leilão. Num tom sagaz,
a dimensão exata da verdade.

Amontoam-se os dedos de metal.
Gesticula uma mão, ganhando espaço.
O outro pede pão, estica o braço.
Não quer comprar, não tem qualquer aval.

-É preciso afastar tão má figura,
Lá onde a memória não existe.
Dizia-me uma velha, dedo em riste,
E eu, ao canto, fazia a cobertura.

-Quem dá? Não há tempo que gaste
A pink star que trazem aí pendente.
Levantam-se, mais airosas, as da frente.
Gritava ela: o pobre que se afaste.

À porta, ali mesmo do meu lado,
Na superfície rugosa do abandono,
Acena-me um rapaz cheio de sono,
De pernas bambas e olhar esfarrapado.


E, à meia-hora, a confusão começa.
O rapaz nada entende, considero.
Diz da soleira: eu quero, eu quero, eu quero.
Mas a velha, injuriada: ora essa!

Já ia em cem, na voz do leiloeiro.
Era esta a hasta do seu maior sucesso.
Vender o tempo, no cartaz expresso,
Ia trazer-lhe rios de dinheiro.


Mais alto, a velha: agora, cento e vinte.
Nuns berros estridentes, viscerais,
Que o diamante na mão valia mais.
Soletrava irada o seu contribuinte.

O rapaz à soleira, mais desperto,
O pobre ao fundo, enrolado entre a gente,
Ouvem da velha aquela voz estridente:
Quem disse que o leilão estava aberto?


Sai o rapaz, sai o pobre e um a um.
O leiloeiro do tempo abre jornais.
A velha grita: recibos, não passais!
Em frente outro cartaz, vala comum.


Maria da Fonte

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